SEM ASSUNTO
Hugo Martins
Hoje procurei por Selene. Só vi o céu limpo de estrelas, mas desenhado de pequenos e brancos frocos que me lembraram pedaços esgarçados de algodão. Procurei Selene mais uma vez. Desconfiei de que está escondida pelo grande edifíicio que ladeia o pequeno edifício em que moro. Com certeza. Como não posso afastar a porra do grande bloco de concreto, satisfaço-me com vislumbrar alguns reflexos do " astro dos namorados". Aqui me perguntei: por que Selene recebeu tal designação? Nem sei nem quero saber. Deve ela fazer parte, em algum tempo histórico, dos signos daqueles que estavam ou se fizeram de apaixonados para tecer discursos para tocar almas impressionáveis. Como nada consigo arrancar do quengo por absoluta e momentânea inanição intelectual, vou trazer à baila historieta em que se pode ver como tudo passa e se traveste, mesmo os discursos em que os apaixonados, iludidos por fugidias ilusões e débeis entusiasmos, deixam fluir lengalenga leviana, fruto de algumas miragens enganosas, que se lhe desenham na pobre alma.
O "causo", nascido da boca do povo, bem atesta isso e põe às claras como a verdade nunca permanece no fundo do poço. Sempre vem à tona, inapelavelmente.
Conta-se que um casal, sentados os dois pombinhos bem juntinhos no banco de uma praça de interior, trocavam juras de amor eterno, coadjuvadas por beijos, abraços e lânguidos olhares,tingidos do mais puro e sincero amor existente na terra. Súbito, Selene surde exuberante por trás do pico de uma serra e, por um momento, derramou seus leitosos raios sobre aquele romeu e sua julieta. Por um só momento, pois uma nuvem gaiata encobriu, por esticados momentos, a luz pródiga daquela lua de luz tão viva. A namorada dengosa sussurra no ouvido do amado: " amor, por que a lua resolveu esconder-se por trás daquela nuvem?" O namorado pegou a deixa e respondeu: "meu amor, certamente está ela com ciúmes de você e se escondeu a fim de nos espreitar..." Claro que a jovenzinha deve ter experimentado prolongado orgasmo emotivo.
Tempos depois, à vista os mesmos personagens, na mesma hora, no mesmo banco, na mesma praça, na mesma cidade. Só um aspecto do cenário mudara: ele sentado numa ponta do comprido banco; ela, na outra ponta. De súbito, Selene e a nuvenzinha arteira surgem nas mesmas circunstâncias daqueles tempos idos. O diabo da mulher faz a mesma pergunta. A óbvia. Devia ter permanecido mergulhada no silêncio em que se encontrava. Foi falar e ouviu o que se previa. Sim, qual a pergunta? Para a manutenção da fidelidade aos fatos, vamos trancrever a tal pergunta e a não surpreendente resposta. "Marido, por que a lua tá se escondendo atrás daquela nuvem." Sensata, sincera e diretamente, o marido respondeu: "Tu não vês, tapada, que os ventos movem as nuvens... A lua não se esconde porra nenhuma atrás de nuvem alguma. Só sendo idiota para assim pensar..." A mulher limitou-se a esboçar um sorrisozinho desgracioso no rostinho enrugadinho e nada mais disse.
Caiu o pano. Fim de comédia. Histórias que o povo conta.
Escrituras Livres
domingo, 20 de outubro de 2019
NÓS E NÓS Hugo Martins Eis que numa conversa informal, alguém comenta: político tal fez isto e aquilo. Da afirmação infere-se que, se alguma coisa foi feita por alguém, cujo mister é construir obras públicas e que tais, daí também se conclui que , se o fez, fê-lo por obrigação de ofício, por ditame de consciência. Ora, se quem lida com política dar a entender que fez mais do que devia ou fez melhor, também não deve ser mitificado por isso. Nada demais, apenas cumprimento do dever. O raciocínio é simples: um médico não é bom médico porque cumpre a missão de preservar a vida ou afugentar a dor. Também um médico, cuja competência fica comprovada por exercer sua obra com máxima dedicação e desmedido amor, também nada faz demais: cumpre o dever para o qual foi incumbido. Da mesma forma, um professor que vai além das expectativas, ensinando, orientando, exemplificando, indicando bibliografia, tirando dúvidas, espedaçando-se, com entusiasmo, em máximos esforços, pode se diferenciar do mero “dador” de aulas, mas, também, cumpre, simplesmente, seu dever. Por isso, não basta ao político profissional embriagar-se de tola vaidade, vomitando promessas e dádivas. É sua obrigação alcançar as metas colimadas. Além disso, está sendo regiamente pago com os tributos que a comunidade, coercitivamente, paga, afora outras “remunerações” que engordam sua bolsa e o fazem mais rico, findo o mandato. Não basta construir escolas sem que haja a preocupação de dotar o professor de sólido preparo, alcançado com a justa remuneração que o profissional deve auferir. De nada adianta construir hospitais se os profissionais da saúde não encontram condições mínimas de exercer seu trabalho. Ao fim e ao cabo, tudo correria, como se diz por aí, às mil maravilhas, se todos, consciente ou inconscientemente, todos que trabalham em prol de todos, adotassem o imperativo categórico do pensador alemão Immanuel Kant, infratranscrito com um par de aspas: “Aja, em qualquer circunstância, como se de sua atitude, fosse ser deduzida uma regra geral para o comportamento de todos os homens.” O alcance do imperativo vai depender da sinceridade, da consciência que cada homem deve trazer na alma de que amor não é mera palavra que se joga frivolamente ao vento em extravagâncias afetivas e discursos caramelados. Vai além, tem em vista o outro, a quem devemos dar o melhor de nós mesmos. Muitos votos despejados nas urnas derivam de manifestações egoísticas, prenhes de individualismo baboso: promessa de emprego, manutenção de cargos, presentinhos e outras patifarias. Quando não resultam de sofismas e mentiras bem cosidas, apanhadas, aqui e ali, da fala de um cara-de-pau verboso, destituído de qualquer consciência dos axiomas da ciência política na sua acepção grega: cuidar da pólis. Cumpra ou não as promessas; use de malabarismo para embair a boa-fé de tantos, ensaie sorrisos cretinos, cerre os punho, cruze os braços e se diga diferente, continue apoiando-se na autoridade duvidosa de gurus políticos e mistificadores, ao fim, aquele artista mal ensaiado levará ao povo que o elegeu a decepção, o engodo e a frustração. Parece coisa de último capítulo de novela global: todos aguardam um epílogo que satisfaça suas expectativas mais recônditas e, baixado o pano, vem o desatino e a sensação do nada, do inexistente, do impalpável... E a vida continua, não importa em que palco.
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PEDAGOGIA PARA OPRIMIDOS E MÍOPES...
Hugo Martins Com a canção Sinal Fechado, Paulino da Viola foi o vencedor do Festival da Canção em 1969, época em que a Ditadura alçou voos mais altos, pois, no dia 13 de dezembro do ano anterior, foi baixado o AI5, expressão mais perversa dos efeitos da Redentora. Era “Presidente”, o general Costa e Silva, que morreu em agosto de 1969 em consequência de um derrame. Deveria ter sido substituído, legalmente, por seu vice, o civil Pedro Aleixo. Assumiu, porém, uma junta militar constituída de três ministros militares, a quem o deputado federal Ulisses Guimarães chamava de “os três patetas”, que, no mesmo ano, “emendam” a Constituição de 1967, de onde surdiu a Constituição nada democrática de 1969. Lembrar que a Ditadura, até então, bateu, humilhou, censurou, castrou a livre expressão, fechou o Congresso Nacional, cassou todos os direitos e liberdades públicas dos cidadãos, trucidou a criação artística, torturou, matou, deu sumiço a muita gente, mentiu, enganou, engazopou, embaiu... Está na História. Leia-se Bóris Fausto, Elio Gaspari (5 volumes), afora testemunhos documentados nas obra Tortura, de Antonio Carlos Fon , ou Brasil Nunca Mais (obra organizada pelo então cardeal Dom Paulo Evaristo Arns (macho que só preá), que se inspirou na obra Nunca Más do escritor argentino Ernesto Sábato, afora jornais da época como Opinião, o Pasquim, Movimento, que eram apodados no título “imprensa nanica”. A nosso ver, era uma imprensa gigante. Nela escreviam ou diziam alguma coisa Ênio da Silveira. Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar, Ivan Lessa, Paulo Francis, Ruy Castro, Tasso de Castro, Henfil... Todos eles tiveram problema com a censura Hoje, alguns caras de pau que se fazem de besta, ou são ignorantes mesmo, negam ter havido ditadura aqui no Brasil, como assevera um sábio cronista social cearense, que não enxerga um palmo adiante do nariz, pois está voltado para o doce mister das futilidades cotidianas de dondocas e que tais. Voltemos a Sinal Fechado. Em 1974, Chico Buarque de Holanda, que, em palpos de aranha com a porra da censura, gravou-a e ainda tirou sarro com censores e outros animais da mesma fauna. Que fez o compositor para isso? É sabido que Chico sofria perseguição incontida da censura. Metaforizador de primeira grandeza, lançou um disco com o título CHICO: SINAL FECHADO. Onde está a jogada chute nos ovos dos censores? Das doze músicas nenhuma era da lavra de Chico. Foda, não bicho? Perdi-me em comentários... Interprete a letra. Mergulhe na música... Ambas primorosas... E politicamente pedagógicas...
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sexta-feira, 14 de dezembro de 2018
NUM RELACIONAMENTO SÉRIO
Hugo Martins
Corriam os anos 70. O ar
pesado. O direito à livre expressão amordaçado. Era esperável. Tudo era proibido. Só não era proibido proibir o amar por amar,
na sua gratuidade, livre da tarja de editos proibitórios e outras invencionices
legais.
Meu coração estava livre,
leve e solto. Exposto, por assim dizer, aos perigos e armadilhas dos acasos.
Nesses tempos de nuvens negras, costumava eu ir a cinemas ou apreciar o recheio
de biquínis teens nas praias de Fortaleza; às vezes, batia uma bola nas areias;
às vezes, pegava o rabo de uma onda e aventurava-me a nadar entre a praia do
Náutico e a praia dos Diários. Foi nessa época que a conheci. Nada nela
chamou-me mais a atenção que o fulgor de sua inteligência. Conversava com a
desenvoltura de um boêmio culto na mesa de um bar. Era pródiga no conhecimento
da literatura brasileira, desde os primórdios, quando aqui se deu início a uma
História cultural, até os tempos hodiernos. História, para ela, não se reduzia
ao puramente episódico ou factual. Pelo contrário, a dinâmica do drama do homem
no tempo e no espaço, não só no Brasil, mas também no concerto universal, ela
esmiuçava com o mesmo rigor analítico dos historiadores de grande porte de um
Capistrano de Abreu ou de um Eric Hobsbawm... Sou interesseiro. Muito me agrada
explorar, no bom sentido, quem tem algo a me acrescentar... E ela tinha... Pude
isso perceber num único encontro que tivemos numa livraria de Fortaleza.
Conversamos longamente, trocamos olhares, sorrisos, mas nada de promessas
quiméricas. Infelizmente, havia entre nós uma barreira: a questão financeira,
coisa ironicamente decisiva para a continuação de alguns relacionamentos
amorosos. Leis da vida. Só cabia a mim a resignação. Lá se foi o tempo;
instalou-se o esquecimento. Nem tanto, nem tanto...
Surpresa. Nem tudo está
perdido. Reencontrei-a depois de uma quase trintena de anos. No mesmo local, no
mesmo horário, num mesmo sábado. Reencontrei-a. Não me pareceu Marcela em segunda
edição no romance machadiano. Não. Apesar de algumas marcas indeléveis do
tempo, mantinha ainda a juventude que se transfigura, magicamente, no olhar e
no ar que Deus lhe deu. Claro que conversamos longamente. Novamente pude
perceber quão nos faz bem tudo que emana das almas ricas de e pródigas em
cultura humanística. Hoje, viúva, mãe de seis filhos, livre de qualquer entrave
sentimental, aceitou minhas investidas de homem interesseiro e cada vez mais
carente de estar perto de gente gente. Desde então, entabulamos um trato de nos
mantermos juntos e inseparáveis no laço forte e inquebrantável de um
RELACIONAMENTO SÉRIO. E duradouro...
Foi assim que reencontrei
a obra HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA, do crítico literário Wilson
Martins, uma publicação da Editora Cultrix, de1973, em sete garbosos e
alentados volumes. Já trocamos algumas carícias e ensaiamos alguns colóquios.
Espero, sem desejar ser indiscreto ou leviano, dar publicidade a algumas cenas
saídas de nossos constantes encontros. A questão financeira, por óbvio, não
mais é...
Nosso amor, plagiando o
poeta, será eterno enquanto durar. Assim espero.
PERGUNTAS AO PÉ DO OUVIDO
Hugo Martins
Você já refletiu mais
demoradamente acerca do significado mais profundo da locução “escola sem
partidos”? Você já discerniu que por trás dela (este eufemismo cínico),
esconde-se uma tomada de partido? Você perguntará: qual? A resposta estaria nos
objetivos a que visa a tal “escola sem partidos”: anular “a livre manifestação
do pensamento”, direito garantido no art. 5º. IV da CF/88. Em outras palavras,
fere-se de morte o postulado cartesiano do “cogito, ergo sum” (penso, logo
existo).
Como se dá a coisa? Só
partindo de uma hipótese. Imaginemos que um professor de literatura brasileira
ministra algumas aulas sobre a segunda fase do modernismo brasileiro. Ora,
Literatura e História andam de mãos dadas. Assim, para se compreender o porquê
de alguns autores daquele período - sobretudo Graciliano Ramos, Rachel de
Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego - promoverem em suas obras ampla
documentação e consequente denúncia da situação de humilhante sofrimento de
grande parcela do povo nordestino, não se pode fugir à evidência de que tudo se
deu na Era Vargas (1930/1945). Como fugir a isso? Deixar o alunado a ver
estrelas ou criar chaves de leitura para a compreensão da relação causa e
efeito decorrente da distribuição perversa da riqueza, que todos produzem? Não existe homem pobre. Existe homem
empobrecido. Nenhum homem nasceu predestinado a ter mesa farta, enquanto outro
nasceu destinado a catar as migalhas das sobras daquela mesa, aqui
universalmente metaforizada.
A obra literária, a
grande, a que tende a se eternizar se constitui pasto para alimentar as grandes
reflexões. Nenhum manual de História do Brasil, nenhum tratado de Sociologia
sobre o Nordeste supera a reflexão que se encontra na obra daqueles autores
aqui referidos. Um Fabiano (em Vidas Secas); um Vicente (em O Quinze); qualquer
moleque da bagaceira ou qualquer coronel de engenho (nas obras do
ciclo-da-cana-de açúcar de Zé Lins); nenhuma prostituta, nenhum menor
abandonado, nenhum personagem pícaro (na obra de Jorge Amado), nenhum deles é
paciente de análise mais acurada em tantas obras científicas, quanto o é na
obra literária.
O coitado do professor,
diante disso tudo, tem alguma alternativa para fugir ao olho do Big Brother?
Seguem-se algumas hipóteses. Acovardar-se, promover a leitura de alguns trechos
deste ou daquele autor e, para adocicar a aula, voltar-se para o biografismo
estéril? Prosternar-se à ideia de que a
sala de aula, em qualquer âmbito e grau, é lugar de pensamento, de criação, de
promoção do educando? Desistir do magistério (que não deve ser um bico) e optar
por vender bananas nas feiras, lugar onde se pode ganhar bom dinheiro? Também
lhe é dado o direito de migrar para outras profissões mais promissoras do ponto
de vista econômico.
Fica mais uma pergunta:
que rótulo se aplicaria ao professor que elegeu a segunda alternativa das
ofertadas? Comunista? Esquerdopata? Socialista?
... O que encerram essas palavras?
Depois eu conto mais
PERGUNTAS DE HUGUS NEPOS. 16-11-2018
Hugo Martins
A pergunta de hoje diz
respeito à linguagem e, portanto, ao mundo e às diversas facetas com que este
se nos apresenta. Hugus Nepos me pede que lhe explique a linguagem em sua
feição expressiva. Enfim, solicitou-me explicar que vem a ser a chamada linguagem
figurada. Procurei ser sucinto e disse-lhe que deixasse de lado a enfieira de
terminologias concernentes à matéria e se prendesse apenas e tão só à
compreensão do que vem a ser a METAFORIZAÇÃO. É o que basta. Hugus Nepos
olhou-me estupefato e colocou um ponto de interrogação entre as sobrancelhas,
franzindo-as gravemente. Aliás, é uma marca física na expressão de suas
perplexidades... Para sossegá-lo, dei
início à exposição da matéria...
Aí está o mundo. Aí está
a linguagem, que o exprime, que o coloca em evidência, que sobre ele diz alguma
coisa, predica-o. Muitas vezes, ocorrem situações em que a linguagem parece não
ser suficiente, por si mesma, para exprimir o que vai na alma do sujeito
comunicante. Instala-se o indizível, o inexprimível, o inefável... Nesses
momentos, é que o sujeito pugna por reinventar a linguagem, lutando consigo
mesmo, recorrendo aos potenciais expressivos desta... É aqui que se faz
necessária a METAFORIZAÇÃO, a “violação” do modo de ser da linguagem no seu
grau zero de expressividade. A estrutura mórfica da palavra “METÁFORA” se
constitui dos radicais de origem grega “meta” e “fora” que, agregados, resultam
na significação “levar além”. Assim, ao recorrer a uma metáfora, está-se a
empregar dada palavra ou expressão ungindo-as de sentido que ultrapassa os limites
do emprego dicionarizado ou da concepção rasa e primária das coisas do mundo.
A METAFORIZAÇÃO pode
estar presente em qualquer linguagem em que se faça necessário o jogo da
invenção. Vamos aos exemplos,
Na Pietá (a piedade), de
Michelangelo, não se tem apenas um Cristo deitado nos braços da Virgem. Além
disso, há um olhar cheio de dor, um abandono eloquente, um amor indizível, uma
sensação de impotência. Charlie Chaplin, que recorreu mais à pantomima que à
fala articulada, repassa à sua genial (não há outra palavra) gestualidade a
metaforização do ceticismo, da descrença, da decepção, do desencanto em relação
ao bicho homem. Sua saída, na cena final de suas fitas, hiperbolizam a mais
dolorosa solidão, a mais cortante sensação de abandono que um ser humano pode
experimentar... Basta um gesto, um silêncio, um esgar, um sorriso amarelo...
Dispensa o ator inglês a aspereza das palavras. Para colocar em evidência o
caos e o cosmopolitismo da cidade de São Paulo, Caetano Veloso, com uma só
frase, diz tudo: ” porque tu és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso”.
Afora o hipocorístico “Sampa”, título da canção, em que se entrevê uma carrada
de afetividade. Quando se refere ao poder expressivo de um mito, o poeta
português Fernando Pessoa, numa só tacada diz tudo: “o mito é o nada que é
tudo”. Aliás, as histórias (mitos) das culturas e civilizações em geral
encerram metaforizações universais, que os psicanalistas deram de chamar
arquétipos. Os romances de 30, da literatura brasileira, os voltados para a
documentação e denúncia dos descalabros de toda ordem, constituem também
metaforizações do abandono e do ilhamento histórico a que foi relegado o povo
nordestino. Tem coisa mais dolorosa que o êxodo rural, chorado por Luiz Gonzaga
e denunciado por Patativa do Assaré na canção Triste Partida? São oito minutos
de lamentação... Só vai ouvindo...
Para nós, metaforizar não
se reduz àquela definiçãozinha da comparação implícita como aparece na
descrição de Iracema por Alencar. Não é tão simples assim. Vai além disso.
Repita-se: toda e qualquer “violentação” imprimida à linguagem a fim de se
alcançar maior expressividade, tem-se metaforização. O resto é didatismo. Tudo
que Graciliano Ramos diz em Vidas Secas, o pintor cearense Aldemir Martins o
faz em breves pinceladas, bem como o pintor Santa Rosa nos romances de Jorge
Amado. A figura do Cristo, no Juízo Final, esplende em força e beleza, ao
contrário da pintura barroca que fixa a figura de um Cristo a merecer piedade.
Bem certo que se trata de estilos de época bafejados por momentos históricos
diversos, por isso, merecem representação e leituras diferentes. O dia a dia
dança em meio a metaforizações das mais diversas facetas, que o ensino da
retórica nomeava. Fugimos a isso, dando preferência à identificação da coisa e
seu grau de expressividade, mais ou menos intenso. Vejamos alguns: “tou
morrendo de fome, de sono e de sede”; “minha vida era um palco iluminado”;
“deixa em paz meu coração, ele é um pote até aqui de mágoa”; “tudo pelo
social”; “ouvia-se o matraquear contínuo de máquinas de escrever”;
“pastoreávamos a noite com nossos cajados de aguardente”; “este é um País que
vai pra frente” (há uma metáfora cênica em que Juca Chaves cantava a musiquinha
patrioteira e, ao entoar esta frase, dava alguns passos para trás); “entrou em
cana”. Nelson Rodrigues, exalçando as habilidades de Mané Garrincha em aplicar
um drible, dizia que “um guardanapo era um latifúndio para aquele infernal
ponteiro.” Ruy Guerra escreveu uma espécie de biografia sobre Nelson Rodrigues,
que intitulou “O Anjo Pornográfico” devido à dubiedade com que o povo
brasileiro enxergava o teatrólogo e cronista esportivo pernambucano.
As metaforizações são
sempre possíveis e inevitáveis: inscrevem-se no problema da linguagem, que, por
sua vez, indaga, interpreta e problematiza o mundo. Revela-se muito cara na
criação artística. Define a mediocridade e a grandeza de um dado artista, a
ingenuidade dos tolos e a estreiteza mental de uma infinidade de parvos de
ideias curtas e de língua solta.
É isso... “ O mundo é um
moinho...”
PERGUNTAS DE HUGUS NEPOS – (2-11-2018)
Hugo Martins
Pediu-me Hugus Nepos
explicar o sentido da expressão “ninguém pode estar acima da lei”. Depois,
emendou outra indagação: “alguém pode estar em cima da lei”? Danou-se, nega do
doce...
Esforçando-me por ser
didático, propus-lhe acompanhar o raciocínio, procurando tomar pé do que vem
ser, em essência, uma lei de cunho jurídico. Comecei por dizer que esse tipo de
lei se presta a disciplinar conduta. É objeto de produto da cultura e,
portanto, criação humana. Como animal social, muito dela necessita o homem para
que as comunidades humanas convivam em harmonia. Pressupõe ela uma forma de
contrato a que se dobram as vontades. Por exemplo: imagine-se o grupo social
família, constituído por quatro membros. Se se estabelece entre eles qualquer
norma, e um deles, por algum motivo, deixa de observá-la, esse alguém está se
colocando acima dos comandos da lei posta pelo grupo. Assim é o Direito. Um
náufrago que se estabelece numa ilha e por lá permanece por quinze anos não se
submete a nenhum comando legal. Suponhamos que, num certo dia, apareça por lá
um outro náufrago. Agora se estabelece o Direito. Como assim? O Direito se
instala toda vez que possam surgir conflitos de interesse. Aqui, seus atores
hão de estabelecer normas, mesmo que implícitas, para que a convivência entre
eles seja harmoniosa. As hipóteses ora aventadas valem para todos, das
situações mais comezinhas às mais complexas. Observe-se que Aristóteles, na era
Clássica da cultura grega, estudou vários documentos com feição de Carta
Constitucional. Da cultura romana, a civilização herdou o Direito, traduzido na
norma escrita. Algumas civilizações, malgrado adotem o chamado Direito
consuetudinário, aquele que se assenta nos costumes, não negligenciam a norma
escrita. Em qualquer situação, a transgressão da norma traduz comportamento que
coloca seu autor no rol dos que pretendem estar “acima da lei”. É por isso, que
a maioria das normas vêm acompanhadas de uma determinada sanção. Ao fim e ao
cabo, todos se devem dobrar ao império da lei. A aplicação da lei deve ser igual para todos.
Quanto a estar em cima da
lei, suficiente que o indivíduo lance mão de uma delas, um código penal, por
exemplo, e coloque o traseiro sobre ele. Ou traga à baila um episódio em que o
criminalista cearense Quintino Cunha, em brilhante atuação numa sessão do
Tribunal do Júri, ouviu de um pretensioso promotor de justiça: “doutor
Quintino, eu estou montado na Lei”! Ao
que redarguiu o espirituoso advogado: “pois o senhor tome muito cuidado, pois
pode estar montando animal que não conhece. ”
Pois é...
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