domingo, 20 de outubro de 2019

SEM ASSUNTO
Hugo Martins

Hoje procurei por Selene. Só vi o céu limpo de estrelas, mas desenhado de pequenos e brancos frocos que me lembraram  pedaços esgarçados de algodão. Procurei Selene mais uma vez. Desconfiei de que está escondida pelo grande edifíicio que ladeia o pequeno edifício  em que moro. Com certeza. Como não posso afastar a porra do grande bloco de concreto, satisfaço-me com vislumbrar alguns reflexos do " astro dos namorados". Aqui me perguntei: por que Selene recebeu tal designação? Nem sei nem quero saber. Deve ela fazer parte, em algum tempo histórico, dos signos daqueles que estavam ou se fizeram de apaixonados para tecer discursos para tocar almas impressionáveis. Como nada consigo arrancar do quengo por absoluta e momentânea inanição intelectual, vou trazer à baila historieta em que se pode ver como tudo passa e se traveste, mesmo os discursos em que os apaixonados, iludidos por fugidias ilusões e débeis entusiasmos, deixam fluir lengalenga leviana, fruto de algumas miragens enganosas, que se lhe desenham na pobre alma.
O "causo", nascido da boca do povo, bem atesta isso e põe às claras como a verdade nunca permanece no fundo do poço. Sempre vem à tona, inapelavelmente.
Conta-se que um casal, sentados os dois pombinhos bem juntinhos no banco de uma praça de interior, trocavam juras de amor eterno, coadjuvadas por beijos, abraços e lânguidos olhares,tingidos do mais puro e sincero amor existente na terra. Súbito, Selene surde exuberante por trás do pico de uma serra e, por um momento, derramou seus leitosos raios sobre aquele romeu e sua julieta. Por um só momento, pois uma nuvem gaiata encobriu, por esticados momentos, a luz pródiga daquela lua de luz tão viva. A namorada dengosa sussurra no ouvido do amado: " amor, por que a lua resolveu esconder-se por trás daquela nuvem?" O namorado pegou a deixa e respondeu: "meu amor, certamente está ela com ciúmes de você e se escondeu a fim de nos espreitar..." Claro que a jovenzinha deve ter experimentado prolongado orgasmo emotivo.
Tempos depois, à vista os mesmos personagens, na mesma hora, no mesmo banco, na mesma praça, na mesma cidade. Só um aspecto do cenário mudara: ele sentado numa ponta do comprido banco; ela, na outra ponta. De súbito, Selene e a nuvenzinha arteira surgem nas mesmas circunstâncias daqueles tempos idos. O diabo da mulher faz a mesma pergunta. A óbvia. Devia ter permanecido mergulhada no silêncio em que se encontrava. Foi falar e ouviu o que se previa. Sim, qual a pergunta? Para a manutenção da fidelidade aos fatos, vamos trancrever a tal pergunta e a não surpreendente resposta. "Marido, por que a lua tá se escondendo atrás daquela nuvem." Sensata, sincera e diretamente, o  marido respondeu: "Tu não vês, tapada, que os ventos movem as nuvens... A lua não se esconde porra nenhuma atrás de nuvem alguma. Só sendo idiota para assim pensar..." A mulher limitou-se a esboçar um sorrisozinho desgracioso no rostinho enrugadinho e nada mais disse.
Caiu o pano. Fim de comédia. Histórias que o povo conta.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018


NUM RELACIONAMENTO SÉRIO
Hugo Martins

Corriam os anos 70. O ar pesado. O direito à livre expressão amordaçado. Era esperável.  Tudo era proibido.  Só não era proibido proibir o amar por amar, na sua gratuidade, livre da tarja de editos proibitórios e outras invencionices legais.
Meu coração estava livre, leve e solto. Exposto, por assim dizer, aos perigos e armadilhas dos acasos. Nesses tempos de nuvens negras, costumava eu ir a cinemas ou apreciar o recheio de biquínis teens nas praias de Fortaleza; às vezes, batia uma bola nas areias; às vezes, pegava o rabo de uma onda e aventurava-me a nadar entre a praia do Náutico e a praia dos Diários. Foi nessa época que a conheci. Nada nela chamou-me mais a atenção que o fulgor de sua inteligência. Conversava com a desenvoltura de um boêmio culto na mesa de um bar. Era pródiga no conhecimento da literatura brasileira, desde os primórdios, quando aqui se deu início a uma História cultural, até os tempos hodiernos. História, para ela, não se reduzia ao puramente episódico ou factual. Pelo contrário, a dinâmica do drama do homem no tempo e no espaço, não só no Brasil, mas também no concerto universal, ela esmiuçava com o mesmo rigor analítico dos historiadores de grande porte de um Capistrano de Abreu ou de um Eric Hobsbawm... Sou interesseiro. Muito me agrada explorar, no bom sentido, quem tem algo a me acrescentar... E ela tinha... Pude isso perceber num único encontro que tivemos numa livraria de Fortaleza. Conversamos longamente, trocamos olhares, sorrisos, mas nada de promessas quiméricas. Infelizmente, havia entre nós uma barreira: a questão financeira, coisa ironicamente decisiva para a continuação de alguns relacionamentos amorosos. Leis da vida. Só cabia a mim a resignação. Lá se foi o tempo; instalou-se o esquecimento. Nem tanto, nem tanto...
Surpresa. Nem tudo está perdido. Reencontrei-a depois de uma quase trintena de anos. No mesmo local, no mesmo horário, num mesmo sábado. Reencontrei-a. Não me pareceu Marcela em segunda edição no romance machadiano. Não. Apesar de algumas marcas indeléveis do tempo, mantinha ainda a juventude que se transfigura, magicamente, no olhar e no ar que Deus lhe deu. Claro que conversamos longamente. Novamente pude perceber quão nos faz bem tudo que emana das almas ricas de e pródigas em cultura humanística. Hoje, viúva, mãe de seis filhos, livre de qualquer entrave sentimental, aceitou minhas investidas de homem interesseiro e cada vez mais carente de estar perto de gente gente. Desde então, entabulamos um trato de nos mantermos juntos e inseparáveis no laço forte e inquebrantável de um RELACIONAMENTO SÉRIO.  E duradouro...
Foi assim que reencontrei a obra HISTÓRIA DA INTELIGÊNCIA BRASILEIRA, do crítico literário Wilson Martins, uma publicação da Editora Cultrix, de1973, em sete garbosos e alentados volumes. Já trocamos algumas carícias e ensaiamos alguns colóquios. Espero, sem desejar ser indiscreto ou leviano, dar publicidade a algumas cenas saídas de nossos constantes encontros. A questão financeira, por óbvio, não mais é...
Nosso amor, plagiando o poeta, será eterno enquanto durar. Assim espero.


PERGUNTAS AO PÉ DO OUVIDO 

Hugo Martins

Você já refletiu mais demoradamente acerca do significado mais profundo da locução “escola sem partidos”? Você já discerniu que por trás dela (este eufemismo cínico), esconde-se uma tomada de partido? Você perguntará: qual? A resposta estaria nos objetivos a que visa a tal “escola sem partidos”: anular “a livre manifestação do pensamento”, direito garantido no art. 5º. IV da CF/88. Em outras palavras, fere-se de morte o postulado cartesiano do “cogito, ergo sum” (penso, logo existo).
Como se dá a coisa? Só partindo de uma hipótese. Imaginemos que um professor de literatura brasileira ministra algumas aulas sobre a segunda fase do modernismo brasileiro. Ora, Literatura e História andam de mãos dadas. Assim, para se compreender o porquê de alguns autores daquele período - sobretudo Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e José Lins do Rego - promoverem em suas obras ampla documentação e consequente denúncia da situação de humilhante sofrimento de grande parcela do povo nordestino, não se pode fugir à evidência de que tudo se deu na Era Vargas (1930/1945). Como fugir a isso? Deixar o alunado a ver estrelas ou criar chaves de leitura para a compreensão da relação causa e efeito decorrente da distribuição perversa da riqueza, que todos produzem?  Não existe homem pobre. Existe homem empobrecido. Nenhum homem nasceu predestinado a ter mesa farta, enquanto outro nasceu destinado a catar as migalhas das sobras daquela mesa, aqui universalmente metaforizada.
A obra literária, a grande, a que tende a se eternizar se constitui pasto para alimentar as grandes reflexões. Nenhum manual de História do Brasil, nenhum tratado de Sociologia sobre o Nordeste supera a reflexão que se encontra na obra daqueles autores aqui referidos. Um Fabiano (em Vidas Secas); um Vicente (em O Quinze); qualquer moleque da bagaceira ou qualquer coronel de engenho (nas obras do ciclo-da-cana-de açúcar de Zé Lins); nenhuma prostituta, nenhum menor abandonado, nenhum personagem pícaro (na obra de Jorge Amado), nenhum deles é paciente de análise mais acurada em tantas obras científicas, quanto o é na obra literária.
O coitado do professor, diante disso tudo, tem alguma alternativa para fugir ao olho do Big Brother? Seguem-se algumas hipóteses. Acovardar-se, promover a leitura de alguns trechos deste ou daquele autor e, para adocicar a aula, voltar-se para o biografismo estéril?  Prosternar-se à ideia de que a sala de aula, em qualquer âmbito e grau, é lugar de pensamento, de criação, de promoção do educando? Desistir do magistério (que não deve ser um bico) e optar por vender bananas nas feiras, lugar onde se pode ganhar bom dinheiro? Também lhe é dado o direito de migrar para outras profissões mais promissoras do ponto de vista econômico.
Fica mais uma pergunta: que rótulo se aplicaria ao professor que elegeu a segunda alternativa das ofertadas? Comunista? Esquerdopata?  Socialista? ... O que encerram essas palavras?
Depois eu conto mais




PERGUNTAS DE HUGUS NEPOS. 16-11-2018
Hugo Martins

A pergunta de hoje diz respeito à linguagem e, portanto, ao mundo e às diversas facetas com que este se nos apresenta. Hugus Nepos me pede que lhe explique a linguagem em sua feição expressiva. Enfim, solicitou-me explicar que vem a ser a chamada linguagem figurada. Procurei ser sucinto e disse-lhe que deixasse de lado a enfieira de terminologias concernentes à matéria e se prendesse apenas e tão só à compreensão do que vem a ser a METAFORIZAÇÃO. É o que basta. Hugus Nepos olhou-me estupefato e colocou um ponto de interrogação entre as sobrancelhas, franzindo-as gravemente. Aliás, é uma marca física na expressão de suas perplexidades...  Para sossegá-lo, dei início à exposição da matéria...
Aí está o mundo. Aí está a linguagem, que o exprime, que o coloca em evidência, que sobre ele diz alguma coisa, predica-o. Muitas vezes, ocorrem situações em que a linguagem parece não ser suficiente, por si mesma, para exprimir o que vai na alma do sujeito comunicante. Instala-se o indizível, o inexprimível, o inefável... Nesses momentos, é que o sujeito pugna por reinventar a linguagem, lutando consigo mesmo, recorrendo aos potenciais expressivos desta... É aqui que se faz necessária a METAFORIZAÇÃO, a “violação” do modo de ser da linguagem no seu grau zero de expressividade. A estrutura mórfica da palavra “METÁFORA” se constitui dos radicais de origem grega “meta” e “fora” que, agregados, resultam na significação “levar além”. Assim, ao recorrer a uma metáfora, está-se a empregar dada palavra ou expressão ungindo-as de sentido que ultrapassa os limites do emprego dicionarizado ou da concepção rasa e primária das coisas do mundo.
A METAFORIZAÇÃO pode estar presente em qualquer linguagem em que se faça necessário o jogo da invenção. Vamos aos exemplos,
Na Pietá (a piedade), de Michelangelo, não se tem apenas um Cristo deitado nos braços da Virgem. Além disso, há um olhar cheio de dor, um abandono eloquente, um amor indizível, uma sensação de impotência. Charlie Chaplin, que recorreu mais à pantomima que à fala articulada, repassa à sua genial (não há outra palavra) gestualidade a metaforização do ceticismo, da descrença, da decepção, do desencanto em relação ao bicho homem. Sua saída, na cena final de suas fitas, hiperbolizam a mais dolorosa solidão, a mais cortante sensação de abandono que um ser humano pode experimentar... Basta um gesto, um silêncio, um esgar, um sorriso amarelo... Dispensa o ator inglês a aspereza das palavras. Para colocar em evidência o caos e o cosmopolitismo da cidade de São Paulo, Caetano Veloso, com uma só frase, diz tudo: ” porque tu és o avesso, do avesso, do avesso, do avesso”. Afora o hipocorístico “Sampa”, título da canção, em que se entrevê uma carrada de afetividade. Quando se refere ao poder expressivo de um mito, o poeta português Fernando Pessoa, numa só tacada diz tudo: “o mito é o nada que é tudo”. Aliás, as histórias (mitos) das culturas e civilizações em geral encerram metaforizações universais, que os psicanalistas deram de chamar arquétipos. Os romances de 30, da literatura brasileira, os voltados para a documentação e denúncia dos descalabros de toda ordem, constituem também metaforizações do abandono e do ilhamento histórico a que foi relegado o povo nordestino. Tem coisa mais dolorosa que o êxodo rural, chorado por Luiz Gonzaga e denunciado por Patativa do Assaré na canção Triste Partida? São oito minutos de lamentação... Só vai ouvindo...
Para nós, metaforizar não se reduz àquela definiçãozinha da comparação implícita como aparece na descrição de Iracema por Alencar. Não é tão simples assim. Vai além disso. Repita-se: toda e qualquer “violentação” imprimida à linguagem a fim de se alcançar maior expressividade, tem-se metaforização. O resto é didatismo. Tudo que Graciliano Ramos diz em Vidas Secas, o pintor cearense Aldemir Martins o faz em breves pinceladas, bem como o pintor Santa Rosa nos romances de Jorge Amado. A figura do Cristo, no Juízo Final, esplende em força e beleza, ao contrário da pintura barroca que fixa a figura de um Cristo a merecer piedade. Bem certo que se trata de estilos de época bafejados por momentos históricos diversos, por isso, merecem representação e leituras diferentes. O dia a dia dança em meio a metaforizações das mais diversas facetas, que o ensino da retórica nomeava. Fugimos a isso, dando preferência à identificação da coisa e seu grau de expressividade, mais ou menos intenso. Vejamos alguns: “tou morrendo de fome, de sono e de sede”; “minha vida era um palco iluminado”; “deixa em paz meu coração, ele é um pote até aqui de mágoa”; “tudo pelo social”; “ouvia-se o matraquear contínuo de máquinas de escrever”; “pastoreávamos a noite com nossos cajados de aguardente”; “este é um País que vai pra frente” (há uma metáfora cênica em que Juca Chaves cantava a musiquinha patrioteira e, ao entoar esta frase, dava alguns passos para trás); “entrou em cana”. Nelson Rodrigues, exalçando as habilidades de Mané Garrincha em aplicar um drible, dizia que “um guardanapo era um latifúndio para aquele infernal ponteiro.” Ruy Guerra escreveu uma espécie de biografia sobre Nelson Rodrigues, que intitulou “O Anjo Pornográfico” devido à dubiedade com que o povo brasileiro enxergava o teatrólogo e cronista esportivo pernambucano.
As metaforizações são sempre possíveis e inevitáveis: inscrevem-se no problema da linguagem, que, por sua vez, indaga, interpreta e problematiza o mundo. Revela-se muito cara na criação artística. Define a mediocridade e a grandeza de um dado artista, a ingenuidade dos tolos e a estreiteza mental de uma infinidade de parvos de ideias curtas e de língua solta.
É isso... “ O mundo é um moinho...”


                


PERGUNTAS DE HUGUS NEPOS – (2-11-2018)
Hugo Martins

Pediu-me Hugus Nepos explicar o sentido da expressão “ninguém pode estar acima da lei”. Depois, emendou outra indagação: “alguém pode estar em cima da lei”? Danou-se, nega do doce...
Esforçando-me por ser didático, propus-lhe acompanhar o raciocínio, procurando tomar pé do que vem ser, em essência, uma lei de cunho jurídico. Comecei por dizer que esse tipo de lei se presta a disciplinar conduta. É objeto de produto da cultura e, portanto, criação humana. Como animal social, muito dela necessita o homem para que as comunidades humanas convivam em harmonia. Pressupõe ela uma forma de contrato a que se dobram as vontades. Por exemplo: imagine-se o grupo social família, constituído por quatro membros. Se se estabelece entre eles qualquer norma, e um deles, por algum motivo, deixa de observá-la, esse alguém está se colocando acima dos comandos da lei posta pelo grupo. Assim é o Direito. Um náufrago que se estabelece numa ilha e por lá permanece por quinze anos não se submete a nenhum comando legal. Suponhamos que, num certo dia, apareça por lá um outro náufrago. Agora se estabelece o Direito. Como assim? O Direito se instala toda vez que possam surgir conflitos de interesse. Aqui, seus atores hão de estabelecer normas, mesmo que implícitas, para que a convivência entre eles seja harmoniosa. As hipóteses ora aventadas valem para todos, das situações mais comezinhas às mais complexas. Observe-se que Aristóteles, na era Clássica da cultura grega, estudou vários documentos com feição de Carta Constitucional. Da cultura romana, a civilização herdou o Direito, traduzido na norma escrita. Algumas civilizações, malgrado adotem o chamado Direito consuetudinário, aquele que se assenta nos costumes, não negligenciam a norma escrita. Em qualquer situação, a transgressão da norma traduz comportamento que coloca seu autor no rol dos que pretendem estar “acima da lei”. É por isso, que a maioria das normas vêm acompanhadas de uma determinada sanção. Ao fim e ao cabo, todos se devem dobrar ao império da lei.  A aplicação da lei deve ser igual para todos.
Quanto a estar em cima da lei, suficiente que o indivíduo lance mão de uma delas, um código penal, por exemplo, e coloque o traseiro sobre ele. Ou traga à baila um episódio em que o criminalista cearense Quintino Cunha, em brilhante atuação numa sessão do Tribunal do Júri, ouviu de um pretensioso promotor de justiça: “doutor Quintino, eu estou montado na Lei”!  Ao que redarguiu o espirituoso advogado: “pois o senhor tome muito cuidado, pois pode estar montando animal que não conhece. ”
Pois é...